sábado, 2 de abril de 2016

Uma breve história da lingerie

    Resolvi falar sobre a história da roupa de baixo feminina porque acredito que a internet carece desse tipo de material, ainda mais em português. A intenção desse post é apresentar uma linha do tempo das peças que faziam suporte à silhueta de diversos períodos, apresentando as principais peças utilizadas por baixo dos trajes que vemos hoje em pinturas e museus. 

Origem

   Lingerie é uma palavra que vem do francês e define peças feitas em linge (tecido feito a partir de linho, algodão, nailon e afins, que geralmente são usados nas roupas de baixo). As roupas de baixo costumavam ser brancas para demonstrar limpeza, e eram peças trocadas frequentemente ao contrário dos vestidos que eram usados diversas vezes antes de serem lavados. Sua função era proteger o corpo do frio, criar um suporte para a silhueta desejada, auxiliar na limpeza, distinguir classes e também podia ter apelo erótico. 


Antiguidade


    Os primeiros registros de mulheres usando peças para cobrir especificamente os seios e regiões íntimas datam dos séculos III e IV a.C, na Sicília ; tratava-se uma espécie de banda de tecido nos seios usada junto de uma tanga.


Era Medieval



    Na era medieval a função da roupa de baixo era puramente utilitária. Por baixo dos vestidos as mulheres usavam longas camisolas de linho, chamadas de smock. Mais ao final do período essas peças passam a ter decoração como pregas e bordados, e uma modelagem mais ajustada ao corpo.

Renascimento/Era Tudor




    É no século XVI, com o renascimento as mudanças na moda que as roupas de baixo também ficam mais elaboradas. Além da smock (chamada de chemise pelos normandos e também de shift), que agora poderia ter a gola aparecendo por fora do vestido, foi introduzida no armário feminino o pair of bodies, que era uma espécie de corpete estruturado com barbatanas e fechada por meio de ilhós e cordões. Para manter a saia no formato cônico, o farthingale (peça semelhante à crinolina, porém com os aros presos a uma estrutura de tecido) tornou-se necessário, e junto dele também usava-se o bum roll (almofadas usadas ao redor do quadril).


Barroco



    Durante o período dos Stuarts (Inglaterra entre 1603 e 1714), as roupas de baixo femininas adquirem um caráter mais sensual, em contraste ao puritanismo vigente. A chemise era perfumada e novamente poderia ser vista por fora do vestido, assim como vislumbres da anágua. O pair of bodies continua sendo usado, agora mais enfeitados e com abas na parte de baixo. As anáguas mudaram de formato e o farthingale começou a ser abandonado. Drawers (calçolas) eram usadas por algumas francesas e o colete em épocas mais frias.

Rococó/ Era Georgiana:



    A chemise no rococó ia até os joelhos, com mangas até a altura do cotovelo. Podiam ser simples e justas ou amplas e com babados, e no início do século XVIII elas ainda podiam ser vistas em algumas partes do vestido. O pair of bodies evoluiu para o stays, que passaram a ser mais enfeitados e havia uma opção mais confortável e feita em tecido acolchoado: os jumps. Nas pernas (que tinham grande apelo sexual), as mulheres usavam meias acima do joelho e para prendê-las usavam jarreteiras. As anáguas eram enfeitadas para serem usadas com vestidos abertos, e as inglesas do final do período usavam anáguas acolchoadas por baixo de seus trajes. Para manter essa silhueta com volume nas laterias utilizava-se panniers ('cestas') ou bum pads (outro tipo de almofada para ser usada no quadril). Os bolsos faziam parte da roupa de baixo como uma peça a parte do vestido.

    Sobre stays eu já escrevi um post, que pode ser lido aqui, e sobre a chemise tem tutorial aqui. As Jarreteiras também foram comentadas aqui e os bolsos aqui.

Diretório



    Após a revolução francesa em 1789 a moda sofreu mudanças drásticas e, consequentemente, a roupa de baixo também mudou. Roupas demasiadamente volumosas e restritivas como as que eram usadas na corte foram abandonas, e consequentemente os stays e panniers também. O que surge são versões mais curtas dos stays, o short stays, e bum pads que continuam sendo utilizadas em alguns trajes. Após esse período de conflito roupas de baixo deixam de ser consideradas uma ferramenta de sedução e passam a ser vistas como algo supérfulo. O uso de drawers começou a ser popularizado por influência da Princesa Charlotte

Império/ Regência


    No início do século XIX, as roupas de baixo continuam sendo leves, sendo que muitas das peças eram dispensadas pelas mulheres. O stays voltam a ser longos porém estruturados com barbantes ao invés de barbatanas de baleia ou madeira. E sua função principal era elevar os seios já que o decote era valorizado na moda. As drawers podiam ter as pernas separadas (esse modelo era chamado de pantalettes) e não eram utilizado por todas. As chemises passaram a ser longas e sem mangas, geralmente sem muito detalhes. Camisas curtas e com golas enfeitadas (chemisettes) eram usadas por baixo do vestido na década de 1820 principalmente. E no início da década de 1830, algumas mangas eram tão volumosas que precisavam de suporte para manter seu formato.


Vitoriano inicial



    A Era Vitoriana se inicia em 1837, na Inglaterra. Novamente, conforme a silhueta muda na moda, as roupas de baixo precisam ser adaptadas. Nessa época as saias passam a novamente ser volumosas, realçando a cintura e necessitando de suportes como várias anáguas (acolchoadas, com babados, de cordão etc), até o surgimento da crinolina em 1851, mesmo ano em que surgiu a abertura por busk nos corsets, que passam a ter uma modelagem mais complexa, afinando um pouco mais a cintura* e realçando os seios. Nessa época também surgem peças como corset cover (para evitar que o corset marque sob a roupa) e ao invés de apenas uma chemise longa, a maioria das mulheres usa uma versão mais curta combinada com drawers, que tornam-se necessários a medida que por causa da crinolina as pernas podem ficar expostas de acordo com os movimentos que a mulher faz ao caminhar.

    Já fiz um tutorial de anágua de cordão aqui.


Vitoriano Tardio



    A partir de 1870 as saias passam a ser menos volumosas, concentrando seu volume na parte de trás. Essa mudança na silhueta exige que uma nova peça seja introduzida no guarda-roupa feminino: o bustle. Almofadas (agora bustle pads) continuam sendo uma alternativa mais confortável e acessível para dar o suporte necessário a saia. Corsets, corset covers (também chamadas de camisoles), e anáguas lisas ou com babados continuam sendo utilizadas, porém como alternativa à chemise e drawers surge a combinação, que é uma espécie de macacão sem mangas e na altura do tornozelo, com abertura no meio das pernas.

    É só no início do século XX que as roupas de baixo passam a mudar drasticamente e se parecer com que utilizamos hoje. Eu posso entrar em detalhes em algum período específico caso algum desses tenha ficado vago demais, e provavelmente escreverei outro post focando no século XX, que deixei de fora aqui para evitar um post excessivamente longo.

    * O uso de corsets na era vitoriana estava mais associado à questão de suporte e silhueta, com uma redução moderada da cintura. O objetivo da maioria das mulheres não era somente afinar a cintura como no tight  lacing.

    Ps.: A divisão de períodos foi feita de acordo com mudanças na Moda, e não na divisão clássica do estudo da História ou Arte.

Referências:

História do vestuário no Ocidente, Fraçois Boucher (livro)
Late 18th Century Skirt Supports: Bums, Rumps, & Culs
Lingerie Histórica, parte 1: farthingale e guardainfante 
Reflexões sobre a moda, vol. II, João Braga (livro)
The History of underclothes, C. Willett Cunnington (livro)
Uma breve história do espartilho, seus mitos e controvérsias

As imagens foram tiradas de diversos lugares, caso queria saber a fonte de uma em específico é só dizer. Priorizei artes da época e peças de museu para ilustrar os períodos.